A aprovação da Medida Provisória 1.304 no Congresso Nacional marca um dos movimentos mais significativos de modernização regulatória do setor elétrico brasileiro das últimas décadas, possivelmente o de maior alcance desde a reformulação dos marcos legais do setor há mais de 15 anos. 

A MP reúne temas de alta relevância, como modicidade tarifária, abertura do mercado de energia, reestruturação dos subsídios e atualização de marcos legais ligados à micro e minigeração distribuída (MMGD), ao armazenamento de energia e ao tratamento regulatório do curtailment. 

Embora ainda dependa de sanção presidencial, o texto aprovado já orienta a atuação de agentes, associações e reguladores, pois redefine a lógica de evolução da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), estabelece juridicamente a abertura do mercado para baixa tensão e ajusta pontos sensíveis da Lei 14.300/2022. 

Controle do crescimento da CDE e novo modelo de rateio 

O primeiro eixo da MP diz respeito ao controle do crescimento da CDE. Essa conta financia benefícios tarifários, políticas públicas e iniciativas de interesse social, mas vem crescendo de maneira acelerada nos últimos anos e pressionando a tarifa final do consumidor conectado à rede de distribuição. O texto aprovado estabelece que, a partir do orçamento anual de 2027, a CDE terá um limite de crescimento definido por dois componentes: as despesas essenciais previstas no próprio texto legal e o montante autorizado para 2025, atualizado por IPCA. Quando esse limite for excedido, entra em ação o chamado Encargo de Complemento de Recursos, que reduz proporcionalmente os benefícios custeados pela CDE, alocando parte do custo adicional aos próprios segmentos beneficiários. Em outras palavras: o estouro orçamentário deixa de ser socializado entre todos os consumidores e passa a ser absorvido prioritariamente por quem recebe descontos. Essa mudança não elimina subsídios, mas cria um incentivo para que sejam mais focalizados, reduzindo os subsídios cruzados que hoje recaem sobre toda a base tarifária. 

Abertura gradual do mercado de baixa tensão 

Um segundo eixo relevante trata da abertura do mercado para consumidores do grupo B (baixa tensão). Diferente do que vinha sendo discutido em versões preliminares, o texto aprovado não adota datas fixas, mas sim prazos condicionados à entrada em vigor da lei: até 24 meses para consumidores comerciais e industriais em baixa tensão, e até 36 meses para os demais consumidores residenciais, desde que uma série de requisitos esteja atendida.  

Entre esses pré-requisitos estão: definição de tarifas segregadas entre o mercado regulado (ACR) e o mercado livre (ACL); implementação de um Supridor de Última Instância (SUI), que garante fornecimento quando uma comercializadora falhar; padronização de produtos com preço de referência para facilitar escolhas; e regras claras para migração. Além disso, foi estabelecido um encargo específico para tratar exposição involuntária e sobrecontratação das distribuidoras decorrente das decisões de migração dos consumidores, evitando que custos dessa transição sejam internalizados apenas no mercado regulado. O modelo aprovado é tecnicamente cuidadoso: antes de permitir a abertura total, a lei exige condições regulatórias e operacionais mínimas que garantam equilíbrio econômico e segurança de abastecimento. 

Curtailment e pagamento aos geradores 

Um ponto que deve ganhar destaque na etapa de regulamentação é o tratamento do curtailment e o pagamento de compensações a usinas que tenham sua produção reduzida por determinação sistêmica. O texto aprovado pela MP 1.304/2025 reconhece juridicamente a possibilidade de restrição de geração e autoriza que os geradores eólicos e solares impactados por cortes, exceto quando decorrentes de sobreoferta de energia, sejam ressarcidos por meio dos Encargos de Serviço do Sistema (ESS). 

De acordo com o que foi aprovado no Congresso, o ressarcimento será retroativo a 1º de setembro de 2023, mediante desistência de eventuais ações judiciais relacionadas, e deverá seguir prazos específicos para apuração e liquidação: o ONS terá até 60 dias após a publicação da lei para apurar os valores de energia cortada, enquanto a CCEE disporá de 90 dias adicionais para calcular e processar as compensações. 

A MP não define a metodologia de cálculo nem os critérios técnicos de prioridade para o corte, que deverão ser estabelecidos em regulamentação posterior pela ANEEL e pelo MME, com apoio do ONS e da CCEE. Essa regulamentação será decisiva para equilibrar segurança do sistema, previsibilidade de receita dos geradores e modicidade tarifária para os consumidores. Conheça a solução para Curtailment da Way2 Technology. 

Microgeração e regulação do armazenamento 

No campo da micro e minigeração distribuída, o texto aprovado não inclui um comando explícito de corte compulsório de geração (curtailment) na rede de distribuição, como chegou a ser discutido publicamente, mas traz ajustes importantes de enquadramento. Foi aberta a possibilidade de que determinados empreendimentos, que originalmente estavam conectados ao ambiente centralizado e registrados em outros regimes, possam solicitar enquadramento como MMGD, desde que conectados à distribuição e atendidos os critérios legais. Além disso, o texto mantém a previsão de que a CDE continuará provendo recursos para compensar benefícios tarifários da geração distribuída, conforme previsto na Lei 14.300. Na prática, o que muda é o incentivo econômico: com o teto da CDE e o Encargo de Complemento de Recursos, episódios de estouro orçamentário podem resultar em redução proporcional dos benefícios, preservando a justiça tarifária entre consumidores com e sem geração própria. 

Outro ponto que ganha espaço é a regulamentação do armazenamento de energia. O texto aprovado atribui à ANEEL a competência para regular, fiscalizar e definir regras de remuneração para sistemas de armazenamento conectados tanto ao Sistema Interligado Nacional quanto a sistemas isolados, incluindo potenciais múltiplos serviços, como flexibilidade operativa, comercialização e suporte sistêmico. Embora o armazenamento não recaia operacionalmente sobre as distribuidoras, ele pode, em médio prazo, reduzir custos sistêmicos associados à necessidade de reserva de capacidade e a eventuais desperdícios relacionados a excedentes renováveis. 

Impactos e implicações para o setor elétrico 

Os impactos da MP 1.304 se espalham por todo o setor elétrico, mas atingem de forma especial a governança tarifária, a gestão de dados e a integração digital entre agentes. Com a abertura gradual do mercado varejista, o volume de migrações deve crescer de forma exponencial. Isso exigirá processos automatizados, interoperabilidade com a CCEE e governança de dados robusta. 
A qualidade da medição se torna um fator decisivo: é ela que garante transparência nas transações, fidelidade nas liquidações e confiança nas relações entre consumidores e comercializadoras. Esse tema se conecta diretamente com a Consulta Pública 198/2025, que trata das diretrizes para o rollout de medidores inteligentes, um passo essencial para suportar a digitalização da rede e a abertura do mercado. A Way2 já abordou o assunto em detalhe neste artigo: Consulta Pública 198/2025: diretrizes para implantação de medidores inteligentes

Reflexões Finais 

A MP 1.304 consolida uma agenda ampla de ajustes regulatórios que envolve modicidade tarifária, transição de mercado, revisão de subsídios e inserção de novas tecnologias, como sistemas armazenamento.  
O texto aprovado cria bases legais para a ampliação gradual da competição na baixa tensão, para o controle do crescimento da CDE e para a regulamentação de temas emergentes, como curtailment e remuneração de sistemas de armazenamento. 

As próximas etapas dependerão, além da sanção presidencial, da regulamentação pela ANEEL e pelo MME, que deverão detalhar procedimentos operacionais, metodologias de cálculo e prazos de implementação. Essas definições serão fundamentais para orientar a adaptação dos agentes geradores, distribuidores, comercializadores e consumidores, e para garantir a coerência entre as metas de modicidade tarifária, expansão sustentável e modernização do setor elétrico brasileiro.